Maguila: da glória no ringue à luta contra a demência pugilística
Um ano após a morte de Adilson 'Maguila' Rodrigues, o Globoplay estreia, nesta sexta-feira, 24 de outubro de 2025, a série documental 'Maguila – Prefiro ficar louco a morrer de fome'. Quatro episódios, cada um uma janela aberta para a alma de um homem que subiu do favelado de Aracaju ao topo do boxe nacional — e caiu, lentamente, vítima de um inimigo silencioso: a demência pugilística. O que parecia uma carreira de sucesso virou um retrato cruento da dor que o esporte pode esconder sob o brilho dos holofotes.
Do nordeste ao ringue: a fuga que mudou tudo
Em 1983, um garoto de 17 anos, Adilson Rodrigues, deixou Aracaju com uma mochila, dois pares de luvas e a promessa de não voltar sem dinheiro. Não era só por fama — era por sobrevivência. Filho de uma costureira e de um ajudante de pedreiro, ele viu no boxe a única saída. O primeiro episódio da série, com 39 minutos, mostra como ele dormia em estações de ônibus, trabalhava como encanador e ainda treinava às 5 da manhã. Foi em São Paulo, numa academia esquecida no bairro do Brás, que encontrou seu treinador, João Batista, que virou pai, mentor e, por um tempo, sua única estabilidade. "Ele não queria ser campeão. Queria só não passar fome", lembra Silvia Vinhas, jornalista esportiva que o acompanhou nos anos 90.
Ídolo nacional: o preço da glória
Na década de 1990, Maguila virou símbolo. Com 1,94m e um direito devastador, derrotou lutadores de peso-pesado em TV aberta, conquistou o título brasileiro e foi apelidado de "o mais pesado da direita do Brasil". Mas o que os espectadores não viam era o cansaço, as dores nas costas, os tremores após os combates. Ele casou com Irani, teve três filhos, apareceu em programas de auditório, virou personagem de novelas. "Ele era o herói do povo. Mas o povo não sabia que ele tinha medo de dormir, porque sonhava com os socos", conta Elia Júnior, ator que o conheceu nos bastidores da RedeTV!.
A queda silenciosa: quando o cérebro falhou
Em 2013, aos 46 anos, foi diagnosticado com encefalopatia traumática crônica — a mesma doença que afetou Muhammad Ali e muitos outros pugilistas. A doença, causada por repetidos traumas na cabeça, destrói lentamente as funções cognitivas. Maguila começou a esquecer nomes, perder o equilíbrio, confundir dias. Ainda assim, ia ao clube, treinava com os jovens, dava conselhos. "Ele dizia: 'Se eu não boxear, eu morro'. Não era metáfora. Era verdade", conta sua irmã, Maria Rodrigues, em depoimento inédito. Os episódios finais da série mostram um homem que já não reconhecia a própria imagem no espelho, mas ainda sorria quando ouvia o gongo.
Vozes que contam o que a TV nunca mostrou
A série reúne 18 depoimentos, muitos inéditos. Raul Gil lembra quando Maguila apareceu no palco do "Programa do Raul" com o rosto inchado e disse: "Se eu não fosse boxeador, eu seria um mendigo comum". José Luis Datena, que o entrevistou em 2008 no "Brasil Urgente", conta que o pugilista chorou ao falar do filho mais novo, que nasceu com problemas neurológicos — algo que os médicos associaram ao trauma cerebral de Maguila. Milton Neves, que o acompanhou em 17 lutas, diz: "Ele não perdeu o ringue. O ringue perdeu ele". E Tom Cavalcante, que o convidou para um sketch na SBT, revela: "Foi o único artista que me pediu para não rir dele. Disse: 'Se eu não for engraçado, quem vai me lembrar?'".
Por que essa história importa hoje?
Maguila não foi um caso isolado. Segundo dados da Associação Brasileira de Medicina Esportiva, mais de 40% dos ex-boxeadores profissionais brasileiros com mais de 40 anos apresentam sinais de encefalopatia traumática. E ainda não há protocolo nacional de acompanhamento pós-carreira. "O esporte vende sonho, mas não vende plano de saúde cerebral", afirma o neurologista Dr. Paulo César Mendes, da Universidade de São Paulo. Enquanto isso, jovens de periferia continuam entrando no ringue sem proteção, sem exames, sem apoio. Maguila foi o primeiro. Mas será que será o último?
O legado que não morreu
Apesar da doença, Maguila manteve-se apaixonado pelo boxe até o fim. Seu último combate foi em 2019, em uma luta amistosa com um jovem de 19 anos, no Clube da Luta de São Paulo. Ele perdeu, mas sorriu. "Foi como se tivesse voltado para casa", diz seu ex-assistente, Jair. A série não é apenas um documentário. É um alerta. Um tributo. E um espelho. "A gente não quer lembrar de Maguila como um herói caído. Queremos lembrar que ele foi um homem que lutou até o último suspiro — e que o esporte, às vezes, paga com a vida quem não tem outro caminho", diz Rafael Pirrho, diretor da série.
Os quatro episódios da série estarão disponíveis a partir de 24 de outubro de 2025 no Globoplay, com o primeiro capítulo liberado gratuitamente para não assinantes — uma forma de garantir que a história de Maguila chegue a todos, não só aos que podem pagar.
Frequently Asked Questions
O que é a encefalopatia traumática crônica e como ela afeta os boxeadores?
A encefalopatia traumática crônica (ETC) é uma doença neurodegenerativa causada por impactos repetidos na cabeça, comuns em esportes de contato como o boxe. Ela leva à perda progressiva de memória, dificuldade de fala, depressão e alterações comportamentais. Em Maguila, os sintomas começaram aos 40 anos, mas os danos ocorreram ao longo de 20 anos de combates. Estudos mostram que 30% a 40% dos ex-boxeadores profissionais desenvolvem sinais da doença após os 45 anos.
Por que a série foi lançada exatamente um ano após a morte de Maguila?
A data foi escolhida para marcar o ciclo completo de um ano desde sua morte, em 24 de outubro de 2024, e coincidir com o Dia Nacional da Conscientização sobre Traumatismo Craniano no Esporte. A equipe de produção iniciou a pesquisa logo após o óbito, buscando preservar memórias antes que familiares e colegas esquecessem detalhes. A escolha da data também foi um gesto simbólico: o boxe, como a vida, tem um round final.
Quem são os principais depoentes da série e por que eles são importantes?
Entre os depoentes estão figuras como Raul Gil, que o viu crescer na TV; José Luis Datena, que o entrevistou nos momentos mais vulneráveis; e Milton Neves, que acompanhou suas lutas mais decisivas. Também participam familiares, como sua irmã Maria e seu filho mais velho, que revelam detalhes íntimos da rotina de Maguila nos últimos anos. Essas vozes são essenciais porque mostram o homem por trás do ídolo — não o herói, mas o pai, o irmão, o homem com medo de esquecer o nome da própria filha.
A série vai ajudar a mudar as políticas de proteção aos boxeadores no Brasil?
A produção já foi encaminhada ao Conselho Nacional de Desporto e à Secretaria de Esportes de São Paulo como material de apoio para a criação de um programa de acompanhamento pós-carreira. Atualmente, não há obrigação legal de exames neurológicos anuais para boxeadores profissionais. A série busca pressionar por mudanças, como exames obrigatórios, plano de saúde mental e fundos de assistência para ex-atletas. "Maguila não precisa morrer em vão", diz o diretor Rafael Pirrho.
Por que o primeiro episódio está disponível gratuitamente?
O Globoplay decidiu liberar o primeiro episódio para não assinantes como forma de ampliar o alcance da mensagem. A ideia é que, mesmo quem não tem acesso à plataforma possa ver a origem da história — o garoto pobre de Aracaju que entrou no ringue por necessidade. A intenção é gerar debate público, não apenas audiência. É um gesto ético: se a história é de um homem que lutou por sobrevivência, ela não pode ser restrita a quem paga.
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