Pela primeira vez na história do país, um ex-presidente foi condenado por crimes ligados a tentativa de subversão da ordem democrática. Em decisão apertada, mas simbólica, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) sentenciou Jair Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de pena por sua atuação após a derrota nas eleições de 2022. A maioria dos ministros reconheceu que houve uma articulação para tentar impedir a posse do vencedor e manter o então presidente no poder.
O placar ficou em 4 a 1. Votaram pela condenação Alexandre de Moraes (relator), Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin. Luiz Fux divergiu e, na maior parte dos pontos, votou pela absolvição do ex-presidente. Além de Bolsonaro, sete aliados foram condenados no mesmo conjunto de acusações, com variações de pena. O caso encerra uma etapa e abre outra: recursos da defesa e a fase de execução da pena.
Como foi o julgamento
A Primeira Turma analisou um conjunto de crimes atribuídos ao ex-presidente e a seus aliados, todos ligados ao período que se seguiu ao segundo turno de 2022. A tese central da acusação era de que houve uma estratégia organizada para minar a confiança no resultado, arregimentar suporte operativo e criar as condições para um rompimento institucional.
Os ministros condenaram Bolsonaro por cinco crimes:
- organização criminosa armada;
- tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito;
- golpe de Estado;
- dano qualificado por violência ou grave ameaça;
- deterioração de patrimônio público.
Na dosimetria, Moraes levou em conta a posição de comando de Bolsonaro e a extensão do dano institucional, aumentando a pena base. Também aplicou atenuante por idade, como manda a lei. O resultado foi uma pena total de 27 anos e 3 meses, sendo 24 anos e 9 meses de reclusão e 2 anos e 6 meses de detenção, com início em regime fechado. Houve ainda 124 dias-multa, fixados em dois salários mínimos por dia.
Para quem não acompanha termos jurídicos todos os dias, vale a tradução: reclusão e detenção são espécies de pena de prisão previstas no Código Penal; a primeira, mais grave, costuma começar no fechado. A progressão de regime (para semiaberto e aberto) depende de tempo cumprido, bom comportamento e outros critérios legais, definidos depois, na execução penal. Já o “dia-multa” é uma multa calculada em dias, com um valor diário que varia conforme a condição econômica do réu.
Na mesma linha, a Turma condenou sete aliados do ex-presidente. Um caso se destacou: o deputado federal Alexandre Ramagem foi punido por três dos cinco crimes (organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta da ordem democrática e golpe de Estado). Com isso, perdeu o mandato e também o cargo de delegado da Polícia Federal. Anderson Torres, outro nome do núcleo político e de segurança, perdeu o posto de delegado da PF.
O ex-ajudante de ordens Mauro Cid teve tratamento diferenciado por causa do acordo de colaboração firmado com a Procuradoria. Os ministros negaram perdão judicial, mas preservaram os benefícios pactuados: 2 anos de pena em regime aberto, devolução de bens e valores, extensão de vantagens a familiares próximos e proteção policial para ele e a família. Em outras palavras: não é absolvição; é uma pena menor por ter colaborado com as investigações.
Além da prisão, a Turma aplicou sanções civis e eleitorais. Os condenados terão de pagar, de forma solidária, R$ 30 milhões por danos morais coletivos — uma reparação que o Supremo entendeu devida pelo ataque às instituições. Todos ainda ficam inelegíveis por oito anos, com base na Lei da Ficha Limpa. No caso de Bolsonaro, a inelegibilidade já vigorava desde junho de 2023, por decisão da Justiça Eleitoral, e agora se mantém por nova via.
Efeitos concretos da condenação
A decisão do STF tem efeito imediato em vários planos. No criminal, começa a contagem para a execução da pena, o que inclui expedição de comunicações aos órgãos responsáveis e definição de regras específicas de cumprimento. Bolsonaro já estava em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, por ordem cautelar anterior, e isso agora será reavaliado à luz da condenação e do regime fechado inicial fixado na sentença.
No funcional, as perdas de cargos já mencionadas (Ramagem e Anderson Torres) se consolidam com a condenação. No eleitoral, a inelegibilidade por oito anos afasta qualquer tentativa de retorno às urnas no curto prazo. No civil, a cobrança do valor de R$ 30 milhões tende a avançar em fase própria, com possibilidade de bloqueio de bens dos condenados para garantir a execução.
Há também o campo dos recursos. Como a condenação veio da Primeira Turma do STF — e o caso teve início no próprio Supremo — não existe um tribunal “acima” para onde recorrer. A defesa pode apresentar embargos de declaração para pedir esclarecimentos e tentar ajustar pontos da decisão. Pode também insistir em levar a discussão ao Plenário, algo que depende de aceitação interna. Em paralelo, pode buscar medidas cautelares pontuais para discutir o regime de cumprimento. Nada disso, porém, suspende automaticamente a condenação.
No mérito, o julgamento deixa um recado que o mundo jurídico vai dissecar por anos: tentativa de ruptura institucional, mesmo quando não consumada, gera responsabilização penal severa para líderes e operadores. A leitura majoritária foi a de que a cadeia de atos após o pleito de 2022 não foi um conjunto de arroubos retóricos, mas um projeto com divisão de tarefas. Essa conclusão pautou tanto a escolha dos crimes quanto a dosimetria pesada.
Importa notar a estrutura da votação. O relator Alexandre de Moraes conduziu a instrução do caso, reuniu provas, decidiu incidentes e apresentou voto pela condenação. Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin acompanharam. Fux abriu divergência e, em pontos centrais, entendeu que não havia prova suficiente para alguns tipos penais. O 4 a 1 final mostra um Supremo com maioria consolidada no tema, mas não unânime.
O caso começou formalmente quando, em março de 2025, a Primeira Turma recebeu a denúncia e transformou Bolsonaro e sete integrantes do núcleo em réus. O julgamento agora fecha o ciclo de conhecimento e abre o de execução. O Supremo costuma separar essas etapas: primeiro decide se condena ou absolve; depois, em atos internos e com apoio do sistema de Justiça, faz a sentença “sair do papel”.
No campo político, a decisão redesenha o tabuleiro. O ex-presidente, que já estava fora da disputa eleitoral, fica sob o peso de uma sentença penal. Aliados, agora condenados, perdem fôlego e acesso a cargos-chave. O governo e o Congresso acompanharão os próximos passos de perto, especialmente no que diz respeito a reações nas ruas e à segurança institucional. Por ora, não há indicação de medidas de exceção; a execução segue o rito comum, com monitoramento das autoridades.
Para quem pergunta “e agora?”, há três fronts práticos:
- Execução penal: definição de local, condições e eventuais progressões de regime conforme a lei e a conduta do apenado;
- Recursos: embargos de declaração e pedidos para levar pontos ao Plenário, com baixa chance de reviravolta ampla, mas com espaço para ajustes cirúrgicos;
- Cobrança civil e eleitoral: andamento da indenização e comunicação à Justiça Eleitoral para registro das inelegibilidades.
Na ponta, o recado do STF é nítido: a Constituição de 1988 tem mecanismos para punir líderes políticos que atentem contra o Estado Democrático de Direito. O processo foi longo, com produção de provas, colaborações premiadas, perícias e debates públicos. O Supremo fechou questão no que considerou serem os eixos de uma tentativa de golpe de Estado, apontando liderança, organização e execução.
Vale atenção a Mauro Cid, peça-chave pela colaboração. Ao manter o acordo, o STF reforça uma lógica já conhecida: delação não apaga o crime, mas reduz pena quando traz fatos, documentos e caminhos de investigação. A manutenção da segurança para ele e familiares indica que o tribunal considera ainda haver risco real, algo comum em casos de alta tensão política.
O ponto da multa também pesa. Os 124 dias-multa, a dois salários mínimos diários, somam um valor expressivo. Esse tipo de pena mira o bolso e tem um componente pedagógico: desestimular repetição de condutas e sinalizar que o dano social não é “gratuito”. Já os R$ 30 milhões por dano moral coletivo funcionam como uma espécie de “conta” pela corrosão institucional gerada pelo plano golpista.
Para além do momento, a sentença deve virar referência em cursos de Direito e nos tribunais. Pela primeira vez, um ex-presidente foi condenado por golpe de Estado e tentativa de abolir, com violência, a ordem democrática. Isso cria parâmetros: o que é discurso político duro e o que é ação organizada para romper a Constituição; como calibrar penas; quando a liderança agrava a responsabilidade. Em termos práticos, outros processos menores, ramificados desse núcleo, tendem a usar a decisão como norte.
Bolsonaro e seus advogados ainda têm estrada pela frente. Devem insistir em nulidades, questionar provas e tentar reduzir a pena. Há espaço para ajustes pontuais? Sim. Há espaço para uma guinada que derrube a condenação inteira? Com a maioria formada e a robustez do voto do relator, isso parece improvável. Mas o jogo nos tribunais, como se sabe, não acaba no apito final: sempre há prorrogação na execução e nos detalhes.
Neste momento, porém, a fotografia é esta: decisão colegiada do STF, pena longa, multas altas, perda de cargos e inelegibilidade. Instituições funcionando e cobrando responsabilidade de quem, segundo a Corte, tentou subverter o resultado das urnas. Esse é o tipo de marco que reescreve capítulos da vida política brasileira.
8 Comentários
Jéssica Magalhães
Então agora é isso? Tinha que ser assim mesmo, mas ainda acho que o país tá dividido demais pra isso dar certo.
Sei lá, parece que a gente só reage quando já tá no fundo do poço.
Não sei se isso muda alguma coisa na prática, mas pelo menos tá na história.
Gilbert Burgos
Uma sentença histórica, mas ainda assim insuficiente. A pena de 27 anos é um mero gesto simbólico diante da magnitude do crime contra a democracia.
A multa de R$ 30 milhões? Ridícula para quem roubou bilhões.
Se isso é justiça, então o sistema está doente desde o início.
Espero que o STF não pare por aqui - essa sentença precisa ser o começo de uma limpeza profunda, não um espetáculo de teatro institucional.
Ariana Jornalistariana
É com profunda consternação que observo a banalização do conceito de justiça constitucional, ao se transformar uma decisão jurídica em um espetáculo midiático de vingança popular.
A condenação, ainda que tecnicamente sustentável, revela uma perigosa deriva da autoridade judicial em direção à moralidade coletiva - um precedente que, se consolidado, desestabilizará a separação de poderes.
Os direitos fundamentais do réu, por mais repulsivo que seu comportamento tenha sido, não podem ser sacrificialmente oferecidos ao altar da opinião pública.
Esta sentença, por mais que se apresente como um triunfo da democracia, é, na verdade, uma vitória da tirania da maioria.
carlos eduardo
Claro, agora todo mundo tá se achando juiz e esquecendo que o sistema jurídico não é um reality show.
Se você acha que 27 anos resolve, tá enganado - o problema é que o país inteiro tá acostumado a resolver tudo com prisão, em vez de prevenir.
Se Bolsonaro tivesse sido investigado em 2018, isso aqui nem existiria.
E essa multa de 30 milhões? Só serve pra quem tem dinheiro pra pagar, e ele não tem - então é só papel.
Isso tudo é teatro. A verdade é que ninguém quer mudar o sistema, só quer ver o inimigo sofrer.
Eber Santos
Essa decisão é um passo enorme, e eu quero acreditar que é o começo de algo melhor.
Se a gente consegue punir um ex-presidente por tentar derrubar a democracia, então talvez, só talvez, a gente esteja aprendendo.
Não é perfeito, mas é mais do que o que a gente tinha antes.
Se a gente continuar assim, com calma e sem ódio, pode ser que daqui a 10 anos a gente olhe pra trás e veja que esse foi o ponto de virada.
Eu acredito nisso. E você?
Clarissa Ramos
É tipo quando você vê um gato correndo atrás do rabo por 10 anos e de repente ele para, olha pra cima e diz ‘ah, era só o rabo’.
Essa sentença não muda o passado, mas ela faz o país respirar fundo.
Deixa de ser só um discurso, vira fato. E fato é diferente.
É como se a Constituição tivesse se levantado, sacudido a poeira e dado um tapa na cara de quem achava que ela era só papel.
Quem sabe agora os outros começam a entender que não dá pra brincar com as regras e depois fingir que não foi nada.
ROGERIO ROCHA
A decisão do Supremo Tribunal Federal representa um marco inédito na história jurídica brasileira, consolidando o princípio da responsabilidade penal de chefes de Estado por atos de subversão institucional.
A dosimetria da pena, embora rigorosa, encontra respaldo na legislação penal e na jurisprudência constitucional, especialmente no que tange à gravidade do dano coletivo e à liderança na organização criminosa.
As sanções civis e eleitorais, por sua vez, reforçam a função preventiva e pedagógica do Direito, alinhando-se aos preceitos da Lei da Ficha Limpa e ao princípio da moralidade administrativa.
É imperativo que a execução penal seja conduzida com pleno respeito aos direitos fundamentais, preservando a integridade do Estado Democrático de Direito que se busca proteger.
Adilson Brolezi
Isso aqui é o tipo de coisa que a gente pensa que nunca vai acontecer… e acontece.
Não é sobre ódio, é sobre regra. Se a gente não punir quem tenta derrubar o jogo, quem garante que o próximo não vai tentar?
Eu não sou fã do Bolsonaro, mas também não acho que a gente precisa de vingança.
A gente precisa de clareza. E essa sentença deu clareza.
Se você quer ser presidente, respeita o voto. Ponto.
Se não respeita, aí é outra história. E agora a história tá escrita.